DRIBLE NA JUSTIÇA
Criminalista fala de táticas para camuflar crimes, absolver réus e arrastar processos até a prescrição
Angélica Santa Cruz
O presidente da Associação dos Advogados Criminalistas de São Paulo, Ademar Gomes, 53 anos, só arruma briga. Há dois anos, foi espinafrado pela Igreja Católica ao conclamar os colegas a defender o direito das mulheres ao aborto. No ano passado, organizou um mutirão com 200 advogados de São Paulo para verificar a situação dos detentos no Estado. Saiu gritando que direitos eram fragorosamente desrespeitados. Os defensores das masmorras detestaram. Mas desde então Gomes perdeu a conta do número de rebeliões em que foi convocado, pelos presos, para ajudar nas negociações. Ainda no ano passado, ganhou um voto de repúdio durante um congresso de criminalistas, em Fortaleza, por dizer que não se deve defender a liberdade de criminosos patológicos.
Casado, pai de três filhas, Gomes foi obrigado pelos médicos a deixar os casos mais eletrizantes desde que sofreu um infarto. Agora, em seu escritório em um bairro chique de São Paulo, só cuida de falências fraudulentas e concordatas. “Dá mais dinheiro, mas é chato”, diz, Gomes concedeu a seguinte entrevista a VEJA:
Veja- O que o senhor achou da condenação de Guilherme de Pádua?
Gomes - E claro que Daniella Perez foi vítima da um crime bárbaro, absurdo. Mas é preciso admitir que as provas contra Guilherme de Pádua e Paula Thomaz são uma brincadeira. Os relatos dos peritos são contraditórios, a acusação não conseguiu sequer definir qual foi a arma do crime. Com provas como essas, os dois teriam respondido em liberdade, mesmo tendo confessado o crime numa delegacia. Na verdade, só foram presos porque se trata de um caso famoso. Foram condenados pela mídia, que é muito poderosa quando mobilizada o clamor público. Guilherme de Pádua já entrou naquele tribunal condenado. E sua maior condenação virá quando voltar para as ruas. Vai ser sempre apontado como a pessoa que matou a atriz da Globo, terá dificuldades enormes para arrumar emprego. Acredito que sua família pode sofrer discriminação. Enfim, esse rapaz ficou com sua vida arruinada.
Veja - O senhor acha que Guilherme de Pádua deveria ter sido absolvido?
Gomes - Não quero e não posso entrar nessa discussão. Não defendo sua inocência, mas apenas seu direito de defesa. Seu advogado fez um bom trabalho, cumpriu sua função, muitas vezes a função de um advogado resume-se a mostrar que tecnicamente o cliente e é inocente.
Veja - Não estaria aí uma forma de enganar a justiça?
Gomes - Enganar não é o termo correio. O direito é fascinante porque é feito de conceitos abstratos, como a moral, a honra, a ética, o bem-estar da sociedade. Mas a justiça só pode ser feita com base em critérios jurídicos. Quer dizer, é preciso ter provas. Por mais que juízes ou integrantes de um júri popular achem que um réu é culpado, só podem condená-lo com base em provas. E acontece, com muita freqüência, de um advogado mostrar que não há provas contra um réu culpado.
Veja - O senhor já fez isso?
Gomes - Muitas vezes. No Brasil onde os inquéritos policiais são falhos, as perícias são indigentes, os depoimentos são tomados de uma forma capenga, e fácil; Todos os advogados sabem que não e difícil desmontar um processo e mostrar sua insuficiência técnica. Ótimas defesas são feitas apenas com base na desmoralização da acusação. Na grande maioria dos casos, defender um réu não é argumentar que ele cometeu um crime. E apenas mostrar a precariedade das provas contra ele. Isso é possível até mesmo em caso de réus confessos. Esse é um ponto. Há outro, do qual pouca gente fala, porque quase sempre envolve ricos. Falo dos crimes intelectuais, perfeitos. Ai é muito difícil de os pegar.
Veja - Existem crimes perfeitos?
Gomes - O diretor de cinema Alfred Hitchcock costumava dizer que milhares de crimes perfeitos são
praticados todos os dias. Ninguém fica sabendo, e são perfeitos justamente por isso. Acho que há também outro tipo de crime perfeito, aquele cometido do ponto de vista absolvição. É praticado na frente de todos, mas seu autor se cerca de todas as chances possíveis de não ser condenado. Esse tipo de crime é muito mais comum do que se imagina. Já cuidei pessoalmente de alguns deles.
Veja - O que o senhor está dizendo é que existem maneiras mais eficientes de cometer um crime...
Gomes - E claro que não estou defendendo que se cometam crimes, isso é absurdo. O que faço é constatar, depois de décadas de profissão, que há maneiras mais e menos eficientes de cometê-los. No geral, as pessoas cometem-nos escondidas e depois negam que fizeram. Nesse caso, quando são pegas, é pior. É muito mais difícil punir um criminoso que pensou como 'iria defender-se antes de cometer um crime. Não é garantia de que ele vá escapar, mas suas chances aumentam. Falando sem pruridos, para um marido traído e que pretende assassinar o amante de sua esposa, é muito mais inteligente tentar enquadrar seu crime entre os que contam naquele momento com uma maior condescendência da sociedade do que matar num beco escuro e sair correndo.
Veja - Que crimes contam com a condescendência da sociedade?
Gomes - Varia de acordo com a época. E isso, naturalmente, se reflete na mentalidade de quem julga. Houve uma época, por exemplo, em que a figura jurídica "defesa da honra" convencia muito. A sociedade absorvia esse argumento como viável. O pai da atriz Maitê Proença, um promotor público, matou a esposa, alegou defesa da honra e foi absolvido. Considero o caso Doca Street como um marco. Ele matou a socialite Ângela Diniz, em 1976, e alegou defesa as honra. Foi absolvido. As feministas foram às ruas, fizeram passeatas e manifestações, a imprensa também esperneou. Houve uma conscientização da sociedade. Ficou claro que se inaugurava um período em que não se admitia mais que uma ofensa pessoal, por mais dolorosa, justificasse tirar a vida de outra pessoa. Num segundo julgamento. Doca Street foi condenado. Um tempo depois o cantor Lindomar Castilho matou a mulher, Eliane de Grammont, usou a mesma defesa e foi condenado. A sociedade mudou, não admite mais esse crime.
Veja - Que outros exemplos existem dessa mudança de mentalidade?
Gomes - Até o início aos anos 90 falava-se muito em crimes ecológicos. O país teve uma febre de
condenações do gênero. Em São Paulo, um produtor foi preso porque desmaiou 100 alqueires do Vale do Ribeira. Lembro de dois caçadores de Pernambuco que foram pegos matando tatus, enquadrados em crime hediondo, e devem estar ate hoje num presídio de segurança máxima, ocupando a vaga de seqüestradores. Um sujeito de Araçatuba, em São Paulo, matou um veado e foi preso. Há casos de pessoas com passarinhos em casa, que também amargaram a prisão. Hoje, quase não se fala mais nisso. Havia aberrações, é certo, mas atualmente vigora uma tolerância que beira a irresponsabilidade. Sabe-se de fazendeiros que desmaiam áreas virgens inteiras e nada lhes acontece.
Veja - Neste momento, que tipo de crime conta com maior tolerância dos juízes e jurados?
Gomes - O que impressiona cada vez mais são coisas como a legitima defesa e a legítima defesa putativa, aquela em que o crime é cometido com base na presunção de um risco. Um exemplo: você anda numa rua escura e encontra um homem que considera suspeito. Ele olha pra você e coloca a mão no bolso do casaco. Você acha que ele vai sacar uma arma e atira nele. Se o homem de fato estava com uma arma no bolso, seu crime tem grande chance de ser enquadrado em legítima defesa. Se o infeliz estava com um pirulito, você alegara que achou que ele sacaria um revolver. Ai é defesa putativa.
Veja - Por que a legitima defesa está na moda?
Gomes - Vivemos todos, inclusive os juízes e integrantes de júris populares, sob o domínio do medo.
Todos o que é parar um carro no sinal e ter calafrios pensando em um assalto. Todos tememos um assalto em nossas casas. Esse é um crime da moda, até porque é um crime cada vez mais comum. A violência aumenta e é natural que as pessoas queiram proteger-se. Outro dia li no jornal o caso de um juiz do ABC que atirou num rapaz que se aproximou de sua casa. Há poucos meses um colega advogado parou o carro num semáforo, um homem que ele considerou suspeito se aproximou e ele atirou. Tanto o juiz quanto o advogado mataram pela síndrome do medo, que toma de assalto qualquer um. Todos sabem dos perigos, da tensão das grandes cidades. Tenho visto muita gente ser absolvida de crimes como esses. Quem esta julgando pensa: "Esse cara é um advogado, trabalhador, teve medo e atirou. Isso poderia ter acontecido comigo".
Veja - O advogado criminalista deve proteger qualquer um?
Gomes - Pela Constituição, todos têm direito a defesa. Mas há várias maneiras de defender uma pessoa. Há casos em que só devemos defender o direito de o réu ter um julgamento justo. Por exemplo: há provas de que um sujeito matou e estuprou crianças. Pode ser a confissão dele, podem ser provas cientificas, como a análise do esperma. E claro que esse sujeito tem direito à defesa, mas não acho que o criminalista deva defender sua liberdade. Ele deve trabalhar para que o réu tenha um julgamento correio, tenha um tratamento psiquiátrico. Enfim, devemos trabalhar sempre com a perspectiva de que o criminoso ainda pode recuperar-se. Acho que todos os crimes são justificáveis. Todos. Mesmo aquele homem que degolou a família inteira tem uma justificativa. É um psicopata, e precisa de um tratamento psiquiátrico.
Veja - O senhor nunca teve problemas em defender criminosos?
Gomes - Já. Um dos meus primeiros casos é o grande arrependimento da minha carreira, era recém
formado e caiu nas minhas mãos o caso de um homem acusado de estuprar e matar uma menina de 11 anos. A garota saiu de casa para comprar pão e, no caminho, foi assassinada. Dois dias depôs, uma senhora apareceu acusando seu marido de ter matado a garota. Contou que ele passou a noite na rua, bebendo. Chegou de manha em casa, com a roupa suja de sangue. Levado à delegacia, o sujeito confessou o crime. Para mim, que falei com ele alguns dias depois, negou. Disse ter confessado sob tortura. Não ouve investigação do fato, ele foi indiciado e pronto. Em sua defesa aleguei confissão forçada. Mostrei que não havia provas contra ele. Disse também que a mulher queria vingar-se do marido porque ele ameaçava deixá-la. Eu o defendi só com base na fragilidade das provas, não havia nenhum outro suspeito de crime. Ele foi absolvido. Um ano depois, soube que ele estava, preso sob acusação de ter matado outra garota. Fui falar com ele. Desta, vez ele admitiu que havia matado mesmo as meninas. E ainda revelou ter assassinado outra. Fui para casa, olhei para minhas filhas e comecei a chorar. Sabia que havia colocado um monstro na rua. Até hoje me sinto co-autor dessas três mortes. Poderia na época da defesa ter requerido exames psiquiátricos para saber da saúde mental dele. Não fiz isso. Defendi sua liberdade e ele ficou livre para matar outras duas crianças. Cheguei a fazer um tratamento psicológico por seis meses.
Veja - Qual é a diferença entre defender o estuprador e conseguir a liberdade para outros tantos réus acusados de homicídio?
Gomes - Há graduações de crime. Para mim, o psicopata é assassino compulsivo. Difere, portanto, do sujeito que mata outro porque, por exemplo, era o amante de sua mulher. Nesse caso, tem-se um homem ferido, que não vai sair por aí matando mais quente. É raro um assassino cuja motivação é o ciúme voltar a matar. Trata-se de um criminoso circunstancial. Alguém que mata por legítima defesa, a meu ver, também tem atenuante. Não é um crime que envolve mecanismos psicológicos complexos. A pessoa reagiu por medo, foi um instante de pavor uma reação instintiva.
Veja - Os Juízes costumam reclamar dos advogados que, em vez de defender seus clientes, fazem tudo para que o processo prescreva. Essa é uma boa defesa?
Gomes - Em homicídios, essa estratégia não vale, porque o tempo de prescrição é muito longo – vinte anos. POF mais hábil que seja o defensor é difícil enrolar todo esse tempo. Mas há outros tipos de crimes em que a procrastinação é uma boa estratégia e acho que faz parte do jogo. Não deixa de ser uma forma de defesa. No caso de falências fraudulentas, por exemplo, é o caminho utilizado, muito fácil por sinal. Esse crime prescreve quatro anos após sua consumação, desde que não haja um inquérito judicial, ou dois anos depois da sua instauração. É um tempo curto. Para piorar, o juiz da falência é universal. Todos os crimes cometidos pelo empresário no período pré-falimentar de sua empresa - como passar cheques sem fundo e emitir duplicatas frias - vão parar nas mãos do mesmo juiz. Do jeito que está o Judiciário, abarrotado, é quase impossível julgar tudo isso muito rápido. Um advogado de defesa num caso de falência fraudulenta sé tem de tentar empurrar a situação. Contestar todos os argumentos do promotor de Justiça, requerer perícias. Aí consegue jogar na prescrição.
Veja - Quanto custa uma boa defesa?
Gomes - Isso é engraçado. A defesa, em si não é cara. Mas os bons advogados, que trabalham para quem tem dinheiro, cobram muito até por estratégia. Há uma cultura que, se o advogado não for caro, não é bom. Há uns seis meses me procurou um senhor de Osasco querendo contratar-me para defender seu filho. Analizei o caso e cobrei 30.000 reais. Ele topou. Depois soube que outro advogado havia trabalhado durante dois dias para acompanhar o flagrante. Cobrou 300 reais porque era amigo do rapaz acusado, mas o pai não sentiu confiança e o dispensou. Antes disso, vendeu dois carros para contratar uma boa defesa. Por incrível que pareça, o advogado de defesa vale mais se valorizar seu passe.
Fonte: Revista Veja - 05 de fevereiro de 1997